Com tradição centenária, o futebol de várzea se reinventa em São Paulo, alcançando níveis profissionais e movimentando comunidades. Nesta reportagem, a Agenzia mostra como esse fenômeno popular atravessa gerações e transforma realidades
Por Pedro Fonseca, Renato Marques, Leonardo Falco, Camille Zanatta e Anna Luisa Daffre
O craque Wellington Paulista já foi camisa 9 do Cruzeiro, artilheiro de Série A e destaque em jornais esportivos. Hoje, reencontra o futebol onde tudo começou: no campo de terra da comunidade. Em um domingo comum na zona leste de São Paulo, com cheiro de churrasco e som alto nos muros, ele entrou em campo como mais um — mas, para quem estava ali, era um evento.
A cena resume o novo momento da várzea: ex-profissionais retornam às origens, não só para jogar, mas para fortalecer um futebol que cresce em organização, investimento e visibilidade. Wellington não é exceção. É parte de um movimento que transforma a várzea em vitrine, renda e sonho.
Craques consagrados de volta ao terrão
Outros nomes conhecidos do futebol profissional também voltaram a jogar na várzea. É o caso do goleiro Jailson, campeão brasileiro pelo Palmeiras, que hoje defende o time do Ipanema, time da zona norte de São Paulo. Pará, lateral com passagens por Santos, Flamengo e Grêmio, também tem frequentado campos de terra firme em São Paulo.
Esses retornos não são casuais. Jogadores consagrados encontraram na várzea um ambiente competitivo, organizado e com estrutura, além de salários em dia e reconhecimento local. Para muitos, é também uma forma de retribuir à comunidade que os formou e inspirar uma nova geração.
O que antes era visto como um futebol informal, hoje é quase semiprofissional. E esses nomes de peso ajudam a elevar ainda mais o nível técnico, atrair público e dar visibilidade a um circuito que nunca deixou de existir, mas agora ressurge com força e propósito.

A novidade da várzea
Wellington Pereira do Nascimento, mais conhecido como Wellington Paulista, ex -jogador de futebol profissional com passagens por Cruzeiro e Palmeiras, disputa o futebol de várzea pelo Terror da Mooca e o Ipanema FC. À Agenzia, Wellington ressalta o alto nível do futebol amador: “Os jogadores hoje em dia, como estão ganhando bem, conseguem treinar em centros de performance bons. Um jogador de qualidade, ainda treinado, fica difícil de jogar contra ele… É muito raro ver alguém que não está se dedicando e treinando dentro da várzea. É igual ao profissional, o nível do futebol tá igualzinho”, conta o jogador. Alto nível que prova a qualidade e a organização da várzea: “Ela paga bem, e paga em dia.”
Wellington Paulista, um ex-atleta , fala como vê a várzea: “A organização que está tendo nas copas dá uma segurança maior para quem era do profissional. Antigamente era foda de jogar na várzea… quem não tinha culhão e coração quente não jogava, diferente de hoje que está muito organizado, está profissionalizado”, disse o jogador. Assim, com essa garantia de pagamento e infraestrutura, fica atraente para atrair ex-profissionais e manter grandes jogadores.
A profissionalização e o alto nível técnico
Edfran Santos, treinador de futebol amador pelo Terror da Mooca e pelo Ipanema FC, defende que a várzea hoje é semiprofissional: “Ela colhe jogadores que estão encerrando contratos e pretendem voltar ao profissional. Tem jogadores que me ligam e me confirmam: quando acabar o calendário profissional, eles vêm pro meu time na várzea. Além de precisar da renda, eles continuam em atividade e em alto nível “, ressalta Edfran Santos.

Sobre o futuro do futebol amador, EdFran enxerga que tem muito a evoluir: “A questão de investimento é uma delas. Acho que, em questão de organização, são poucos encaixes para fazer, mas sempre tem o que melhorar”.
Dinho Soares, técnico e presidente do Capim Maluco FC, com passagens pelo MEC Tiradentes, Marcone FC e X do Morro, enfatizou a profissionalização do futebol amador. Dinho apontou que dentro da várzea a cobertura da mídia impulsionou a encaminhar ao profissionalismo. “O dinheiro na várzea sempre existiu, só que hoje o futebol amador toma proporções onde grandes emissoras acompanham e fazem matérias sobre o futebol varzeano. Isso é o que coloca ele com essa mídia de profissional”, afirma Dinho Soares. Ou seja, a várzea nunca mudou sua essência, mas com a cobertura de jogos e de matérias feitas pela “grande mídia”, o futebol amador surpreende quem vê.
O crescimento e a nova estrutura
Grandes agremiações se concentrando em hotéis, jogadores assalariados mensalmente são provas da profissionalização da várzea. “É só você ver que o artilheiro do Brasil em 2025, Fábio Azevedo, estava na várzea até ano passado.” Isto é, o futebol das comunidades hoje rivaliza com o nível de competição ao de alguns campeonatos, “até tendo enfrentado times como o São Caetano, onde conseguiu impor seu futebol característico e ainda sair com o empate”, afirma Dinho Soares.

Dentro da várzea há muito dinheiro envolvido. “Uma grande agremiação não gasta menos de 15 mil (reais) por jogo.” O experiente treinador Dinho Soares destaca que para montar uma equipe de alto nível de competição é necessário investir. “Cada vez fica mais raras equipes com baixo investimento copando competições.” Nem sempre ter as estrelas é necessário, porém figuras como ex-jogadores são fundamentais para dentro de uma equipe “Esses caras só acrescentam para o time.”
O papel da várzea para as comunidades
“O time de várzea para a comunidade é como se fosse o PIB dela”, ressalta o técnico Dinho Soares.
A várzea não circula somente o dinheiro dentro da comunidade, segundo um dado levantado produzido pelo GE. O esporte amador tem a força de impactar pequenos fabricantes de uniformes, que investem em tecnologia e profissionalização que geram desenvolvimento da várzea.

O futebol de várzea continua pulsando nas comunidades, desempenhando um papel essencial em seu cotidiano. Diego Viñas, jornalista e pesquisador do futebol de várzea, destaca essa importância: “Um bairro que tem um time amador é como se ele fizesse papel de uma ONG… a várzea tem uma função de poder público, transformando a vida daquelas pessoas.”
Diego é curador do Vozes da Várzea, exposição feita dentro do Museu do Futebol, localizado no estádio do Pacaembu. A iniciativa foi fundamental para levar a várzea a lugares nunca ocupados: “Queríamos mostrar a relação do futebol de várzea na vida da pessoa, direta ou indiretamente, com histórias que conectam o paulistano ao futebol de várzea”. A exposição ainda destaca a transformação da várzea com o crescimento da capital paulista, com imagens, textos e depoimentos, vozes na várzea mostra a história do futebol varzeano que, ao contrário do que muitos pensam, ele vive.
O surgimento do futebol de várzea
Várzea, segundo o dicionário Michaelis, significa “Terreno de extensão mais ou menos considerável, de aspecto plano; abarga, barga, planície.” Para muitos, uma paixão que ultrapassa os campos de futebol. O futebol varzeano começou nos bairros operários de São Paulo, no século XX. Os campos improvisados, em terrenos baldios e margens de rios, viraram palcos para os primeiros jogos. Não havia grama, chuteiras ou juiz profissional. Só vontade de jogar e a paixão pelo esporte.
Com o crescimento da cidade, os terrenos ficaram cada vez mais raros, empurrando a várzea para as periferias de São Paulo. Ao longo dessa trajetória, não faltou resistência, com o avanço da urbanização e a explosão populacional da cidade, principalmente com a chegada de migrantes nordestinos, a várzea se espalhou como cultura viva.
Os primeiros passos da várzea
Nos anos 1930 a 1950, surgiram ligas de bairro, campeonatos organizados e rivalidades históricas. O auge veio entre as décadas de 1960 e 1980. Os campos ficavam lotados aos domingos. O futebol era o grande evento da comunidade, ponto de encontro, festa, lazer e até ferramenta de resistência em tempos de ditadura.
Mas a crise bateu à porta nos anos 1990 e 2000. A especulação imobiliária tomou conta dos espaços. Campos foram asfaltados, murados ou abandonados. A violência e a falta de incentivo fizeram muitos times desaparecerem. A várzea, que sempre resistiu na base da força popular, passou a viver de resquícios, mesmo assim, não morreu. Pelo contrário, resistiu e se reinventou. Com investimento de empresários e a criação de torneios como a Copa Pioneer e a Copa do Busão, a várzea se tornou referência.
O investimento

Wellington Paulista desembarcando do ônibus para a final da Copa do Busão. Foto: Pedro Fonseca/ Agenzia
Uma questão que se deve ter em mente é o grande investimento feito na várzea: tão alto que chegou a ser polemizado nas redes sociais anos atrás. Inicialmente, era algo apenas para aqueles que tinham paixão pelo esporte, sem tanto investimento, era algo que vinha do povo para o povo, algo considerado bem “caseiro”, porém, já tem um tempo desde que o investimento na várzea vem crescendo cada vez mais
Desde sempre, a várzea teve como característica a autogestão: os times organizando seus torneios/campeonatos, uniformes, treinos, essa modalidade acabou gerando uma espécie de economia popular, gerando empregos diretos e indiretos, desenvolvendo melhor a economia local, desde as costureiras que fazem os uniformes até as lanchonetes que vendem alimentos para a torcida em jogos e campeonatos desses times.
O peso do capital: quando a várzea deixa de ser só paixão
Os conhecidos jogos de apostas que sempre estiveram presentes no futebol brasileiro também estão dominando os jogos de várzea, patrocinando os jogos, além de darem a opção de aposta para os espectadores dos jogos. A intenção é cobrir os custos dos jogos, garantir mais força e reconhecimento à várzea, mas, é uma ação contraditória, já que em muitos casos esses tipos de jogos comprometem a renda de muitas pessoas, inclusive moradores de áreas periféricas, que sempre foram o público-alvo (além de serem os envolvidos, jogares, colaboradores) do esporte.
Consequentemente, os investimentos realizados na várzea têm aumentado cada vez mais, por um lado, esse aumento traz de certa forma mais reconhecimento para a modalidade, porém, é contraditório, considerando as raízes e a história do futebol de várzea, sendo essa uma questão extremamente polemizada nas mídias digitais.
O futuro da várzea
O futebol de várzea passa por desafios constantes. As transformações urbanas modificaram o seu estilo, campos onde eram jogados, materiais esportivos, mas não o seu significado, que está em uma constante evolução, com a maior presença das mídias sociais que mistura tradicionalismo e modernidade. Os clubes de várzea continuam desenvolvendo suas práticas de forma mais profissionalizada, como por exemplo, o investimento nas estruturas, equipamentos ou mesmo no pagamento de seus atletas. Com a presença das mídias e redes sociais, o futebol de várzea está tendo mais visibilidade, apresentando uma importância social maior.

Embora geograficamente a várzea esteja desaparecendo, o conceito de futebol amador, que é uma espécie de subgrupo do futebol de várzea, segundo o estudo publicado pela revista pesquisa FAPESP, que afirma que o futebol de várzea continua a ser pautado pela informalidade e a ocupação espontânea de terrenos, enquanto o amador envolve times que começaram na várzea e avançaram para um modelo institucionalizado, com torneios regulares, estádios pequenos e mecanismos financeiros para sustentar as equipes.
Por todos esses aspectos, pode-se dizer que o futebol de várzea continua resistindo e ainda deverá se manter vivo por muito tempo, cumprindo sua função social de integrar, entreter e revelar novos talentos.